Apresentação

Inspirada pelo tema "Relação do autor com a escrita".  


Escrever ou Morrer

Aos 12, comecei a escrever nas folhas de um fichário que achei jogado na gaveta do escritório do papai. O diário florido que ganhei de presente em alguma data comemorativa, com seu acabamento impecável e o cadeado infantil da cor chiclete, me encarava todas as noites, se questionando o por que eu insistia em
acumular palavras
e mais palavras,
em cada canto de papel largado que encontrava pela casa.
Gostava de preencher o vazio com a minha escrita de criança-
mulher,
que olhava através da janela, sonhava acordada com o mínimo de vida que já tinha vivido e acreditava que
escrever
curava os pesadelos,
afastava as bruxas más.
Aos 16, mal pressionava a ponta do lápis no papel e as palavras jorravam de dentro. Sentia-me uma queda
barulhenta e desarmônica da cachoeira de letras que vivia em mim.
Do caos e desencontro com meu próprio eu, corria em círculos intermináveis na selva densa dos pensamentos sabotadores, que fincavam raízes e roubavam espaço da verdade, estampada na minha cara
casa.
Aos 21, soltei o lápis, e o papel voltou a ser papel.
Rasguei triturei amassei mastiguei engoli vomitei a gosma branca.
O borrão de tinta escorria o que um dia era-me essência,
vida
abrigo.
Abri mão,
abri parte de mim para o mundo gigante e as
palavras,
que nunca foram escritas,
por uma escritora ainda perdida,
voaram para longe.
Aos 25, era escrever ou morrer. Decidi que era muito nova para morrer, então escrevi.
Escrevi com a sede de um recém-nascido que ficou madrugadas inteiras acumuladas, implorando pelo leite
materno,
escrevi com a sede de uma viúva em ter de volta nos braços o marido enterrado,
sede
de um conforto sincero tão desejado, sem telas e desperdícios de beijos,
sede
do curativo da mãe na pele arranhada pelo tombo bobo da bicicleta de um lado sem rodinha,
sede
da chuva que molha pedaços inalcançáveis da alma que lê, relê e escreve.
Aos 32, a vida foi gentil. Via e fazia poesias ao respirar
na fila do mercado, no elevador, dentro do carro e esparramada na rede de renda que alegrava a varanda.
Os pesadelos de crianças deixaram meu sono,
a bruxa má nunca mais voltou.
O tempo levou consigo meus anos de vida, mas as palavras permaneceram. Meu cabelo, sempre castanho, nascia da cor do papel que escrevia. Arrancava pois me doía perceber que crescia rápido demais. ~Quando trocamos o “crescer” pelo “envelhecer”? ~
“Não pode arrancar fio branco porque nascem mais 3 novos.”
Arranquei mesmo assim. Arrancava e corria de encontro com o papel para doer menos. Arrancava e escrevia.
Arrancava e escrevia.
Escre-vida.
Uma hora, fui obrigada a parar de arrancar, eram muitos. Melequei a tinta escura na cabeça e as gotas pintaram os textos nascidos da morte dos fios.
No meu aniversário de 88, soprei as velas rodeada de amor, e agradeci por todas as palavras que também cuidaram de mim.
Já deitada na cama, revivendo o livro da minha vida, aceitei que
há algo belo no espaço em branco.
Estiquei os braços e alcancei o caderno.
Escrevi, pela última vez.


Informações

Este texto é original e foi publicado primeiramente no litera mondru.

    https://mondru.com/produto/pes-descalcos-de-uma-pequena-vida/
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