Apresentação
Este texto deriva da minha pesquisa para a escrita da Dissertação de Mestrado em Filosofia. Assim, é uma formulação anexa ao intuito principal da dissertação, abordando temas sem sem o rigor formal acadêmico.
Já somos utópicos
Tenho me debatido com a ideia de utopia como “não lugar”, lugar que não existe. Os estudos contra-hegemônicos apontam para uma falência da própria ideia do real. O real, como contrassenso, é constantemente construído, reiterado a partir de hábitos políticos, horizontes comuns de discurso que determinam de antemão o que pode ou não ser dito, o que é possível ou não, o que é sensato e o que é infantil e ingênuo. A “realidade” do gênero, da raça, da deficiência, constituem um vazio ontológico que se sustenta por meio dessas práticas de performance reiterada que produz sujeitos, produz modos de vida, marca corpos, produz realidade.
Constitui-se aqui uma ideia de austeridade que permeia não só a economia, mas também o imaginário que se pretende revolucionário e transformador. A queda da URSS consolida o capitalismo como fim da história, a partir do qual não há horizonte possível fora do neoliberalismo que se consolida. Mark Fisher elabora essa condição difusa que permeia o século XXI no conceito de Realismo Capitalista.
Berardi desenvolve a ideia de um futuro perdido. O futuro como um horizonte de expectativa de progresso positivo vai se desgastando com as Guerras Mundiais. O futurismo italiano se alia ao fascismo por um futuro das máquinas e da velocidade. Em certa medida, o futurismo produz uma estética fascista que funciona e o faz funcionar.
Contudo, a policrise atual aponta para um beco sem saída. Estamos fodidos? Há uma “saída” para a crise ambiental, humanitária, econômica? O que há para além do fim do mundo? Há, inclusive, um fim do mundo?
Estamos diante de um futuro entupido pela catástrofe. De fato, um otimismo ingênuo não se sustenta frente aos horrores que brotam em nossos celulares. Notícias e mais notícias de massacres, carnificinas, fobias institucionalmente legitimadas e reproduzidas, um avanço sobre o que resta dos recursos naturais.
Mas, se pararmos atentamente para perguntar. A quem serve nosso desespero? O que um futuro desesperado produz no presente? Há tempo para a derrota?
Uma certa aversão à utopia parece permear o campo que se convencionou chamar esquerda. Uma inabilidade de construir um horizonte comum de sonho e imaginação que justifique as ações do presente. Um futuro comum que dê sentido a ações coletivas de resistência e, sobretudo, produção de outros modos de vida.
Mas essa aversão ao utópico não se aplica em todas as situações. Afirmo que precisamos usar utopia para designar os termos certos. Dar a César o que é de César.
Se por um lado rechaçamos — envergonhados — qualquer possibilidade de utopia, todo dia acordamos dentro de uma utopia que funciona muito bem. Compomos com ela engrenagens muito bem lubrificadas. É preciso dar nome aos bois. O que é o neoliberalismo se não uma utopia? O que nos move se não um “não lugar” de sucesso inalcançável. Quanto suor, sangue e tempo são gastos para a realização de uma utopia que, no entanto, produz mais sangue, mais suor e menos tempo?
É preciso compreender o capitalismo neoliberal como uma utopia. Mais que isso, desinvestir-nos dessa utopia. Produzir uma utopia que seja emancipadora e não competidora.
Preciado propõe — em Dysphoria Mundi — o otimismo como metodologia. Não se trata de uma positividade que fecha os olhos às atrocidades. Mas um modo de disputa política que não se contenta em criticar a barbárie, mas opõe a ela um outro modo de vida. A utopia como instrumento de produzir o agora. De disputar o desejo.
Mark Fisher desenvolve a Hauntologia como uma proposta de transformação do desejo capturado pelo Realismo Capitalista. Há espectros que rondam nosso presente. Espectros de Marx, espectros dos futuros que nos foram negados. Como fantasmas, eles tendem a retornar e assombrar nosso presente. Contudo, eles buscam nos anunciar que outros modos de vida são possíveis fora do que é possível.
Nessa curva da história, jogar dentro do Real é falhar de partida.
Isso porque a ideia de possível joga dentro do Real, que é capitalista. Nesse sentido, urge inclusive suspeitar das vozes que nos dizem “mas isso é possível?”. Não, não é possível. Mas é exatamente aqui que precisamos permanecer. Na tensão entre o possível e a utopia. É a utopia que alarga a ideia de possível. Isso é evidente na ascética neoliberal.
O que são os coaches se não demiurgos da utopia neoliberal? No próprio vazio da realidade eles produzem milhões de reais com a força da utopia.
A utopia já funciona. A utopia já está aqui. Cremos que é mais possível chegar ao primeiro milhão que realizar uma distribuição dos recursos que lide com a fome. Cremos que é mais possível colonizar Marte que viver uma vida em que o trabalho não consuma a maior parte do dia.
Já somos utópicos. A questão já não é utopia ou realismo. Mas qual utopia produz nosso real.
Informações
Este texto é um trecho de material já publicado.
Texto publicado no Medium


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