Apresentação

Nesta entrevista, Sarah Munck conversa com a poeta Mírian Freitas sobre Damascos Feridos (Alpendre Literário, 2025).

Autora de livros marcantes como A memória é uma oficina de ossos (Urutau, 2023) e finalista de prêmios literários VivaLeitura (MEC e MINC/Gov. Brasil, 2016) e Cláudio Willer de poesia, pela União Brasileira de Escritores de São Paulo (UBE/SP, 2023); Mírian Freitas reflete sobre como sua poesia entrelaça denúncia, compaixão e esperança em meio às urgências do presente.


Entrevista com Mírian Freitas

Foto: arquivo pessoal de Mírian Freitas

Conheci Mírian Freitas por meio da leitura do livro A memória é uma oficina de ossos (Urutau, 2023). Desde então, trago comigo os versos de “pisca-alerta”, que ressoam como um chamado à vida em meio à violência:

“Hoje acordei
para alimentar os pássaros
e libertar as crianças
dos cardumes da violência.”

A poeta é mineira e reside em Juiz de Fora. Doutora em Literatura Comparada pela UFF, lecionou em Massachusetts (EUA) e hoje é professora do Núcleo de Línguas do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais, instituição na qual também atuo.

Entre as suas produções acadêmicas e literárias, destacam-se Intimidade vasculhadas (7Letras/Imprimatur, 2006), Exílios naufrágios e outras passagens (Patuá, 2016), Quase (JustFiction, 2019), Caio Fernando Abreu: Uma poética da alteridade e da identidade (Ensaio Ilustrado/CRV, 2020), Quando éramos pássaros e outros poemas abissais (Penalux, 2021), Mosaico (Sempre-viva editorial, 2022), Sua obra mais recente, Damascos Feridos, é uma produção independente publicada em 2025 sob o selo Alpendre Literário.

Mírian Freitas também foi finalista dos prêmios VivaLeitura (MEC e MINC/Gov. Brasil, 2016) e Cláudio Willer de poesia, pela União Brasileira de Escritores de São Paulo (UBE/SP, 2023).

Foi a partir dessa força poética (capaz de conjugar denúncia e compaixão) que me aproximei de Damascos Feridos. Nesta conversa, quis entender como a poesia de Mírian mantém vivo o fio da memória e da esperança quando tudo ao redor parece ruir.

O que significa escrever diante do horror? Como a palavra pode se tornar gesto de resistência contra o apagamento?

É justamente sobre Damascos feridos que a entrevista se debruçará: uma obra em que a poesia se levanta contra o silêncio e faz da palavra um território de memória e de luta:

“Enquanto homens de ferro lutam contra homens de barro
as crianças de Gaza caminham sob as nuvens de fogos
com os rostos machucados como damascos feridos
(e) acenam aos pássaros da morte
com suas pequenas mãos de adeus.”

“Noites incendiadas pelos rojões de pólvora
abrem feridas na pele de Gaza.
Do rosto da poesia e da revolução
renasce o ombro do exílio
para escapar do abraço da morte.”

 

Entrevista

 

No livro Damascos Feridos, sua poesia parece erguer-se como um ato de resistência e de memória. Que papel você acredita que a poesia desempenha em contextos de guerra e apagamento, como o vivido pelo povo palestino?

A poesia é testemunho de um tempo, de uma época. Homero, em Ilíada; Paul Celan, em Sete rosas mais tarde e outros, deixaram-nos seus arquivos poéticos comprobatórios de momentos que consagram a história como vórtice das memórias de uma humanidade em flagelo. Portanto, em Damascos Feridos, o papel da poesia não é diferente e cumpre sua “missão” de armar o leitor para o combate, como também revelar ao mundo os horrores da guerra em toda a sua abominação.

Você homenageia Hiba Abu Nada, escritora palestina morta durante os bombardeios em Gaza, logo nos primeiros versos. Como foi o processo de aproximação com a dor de uma mulher tão distante geograficamente, mas tão próxima em sua sensibilidade poética?

Hiba é uma poeta (mulher) como eu e muitas outras que acreditam na arte como instrumento da verdade, que liberta e humaniza os povos. Por isso, quando soube de sua morte, sensibilizei-me. Ainda que não a tivesse conhecido sequer pelas mídias digitais, senti-me próxima a ela, pela afinidade com a literatura e me comovi com a maneira como ela resistiu e testemunhou o terrorismo sionista, expressando em seus versos − minutos antes de ser morta −, o cenário dos incessantes ataques bélicos protagonizados por seus assassinos, em contraste a sua fé:

“ A noite na cidade é escura,

exceto pelo brilho dos mísseis;

silenciosa, exceto pelo som do bombardeio;

aterradora, exceto pela promessa lenitiva da oração;

tenebrosa, exceto pela luz dos mártires”.

Muitos dos seus poemas evocam imagens de alimentos, frutos, tecidos e paisagens: damascos, romãs, hijabs, deserto. Como essas imagens simbólicas ajudam a construir uma Palestina viva, para além da destruição que domina o noticiário?

O propósito do uso desses elementos simbólicos na poesia de Damascos Feridos é justamente (re) construir a Palestina como um lugar de frutos doces, agridoces, cores terracota como as do deserto, flores, pássaros, árvores, para que além do caos ao qual a linguagem é submetida, possa ser possível acreditar que os sentimentos de alegria, generosidade e gentileza ainda resistam na boca do homem como um sinal de esperança diante dos tempos estranhamente obscuros.

A Palestina aparece em sua escrita como um território sagrado, mas também como um corpo dilacerado. Qual é o desafio de escrever sobre uma dor que não é sua diretamente, sem cair na apropriação, mas com empatia e responsabilidade?

A literatura tem a função de nos exercitar e de nos tornar capazes de chorar por um outro que não somos nós, nem são os nossos. Ela desperta sentimentos de compaixão, de fraternidade, de irmandade. Afinal, quem seríamos se não pudéssemos esquecer por alguns instantes de nós mesmos para pensar no outro? O que significa protestar contra o sofrimento alheio quando reconhecemos a sua existência? Ser empáticos à dor do outro diante de catástrofes humanitárias como o genocídio do povo palestino, tem sido o nosso compromisso maior em acolher o sofredor, seja ele quem for; esteja ele onde estiver. Posso dizer que não me senti capaz de olhar para aqueles corpos e almas dilaceradas e permanecer em silêncio. É um repertório de crueldades difíceis de olhar de frente sem derramar sucessivas lágrimas. As desgraças da guerra assombram e nos deixam menos esperançosos no mundo, isso é fato. Porém, se nos calarmos, decretamos nossa morte; decretamos a morte da humanidade. Em Damascos Feridos, evidencio que a Palestina é a terra dos pomares, a terra-memória, a terra da poesia, das oliveiras, da fé inabalável, porque não há povo nenhum no mundo que mereça viver somente de mortes e desesperança. A Palestina é uma terra fértil de grandeza humana incalculável, pois, ela se tornou para o mundo, o pulmão da resistência e, consequentemente, da sobrevivência, pois os palestinos muito têm nos ensinado sobre resiliência e amor, diante da ferocidade monstruosa do fascismo e da violência racista dos que querem exterminá-la.

Você escreveu este livro em meio ao agravamento dos conflitos em Gaza, com cenas devastadoras atingindo o mundo todo. Como isso afetou sua escrita, isto é, houve momentos em que a poesia parecia insuficiente diante do horror? E, ainda assim, o que a fez continuar escrevendo?

A literatura é um registro da história. Ela também é um documento crítico e humano de um país, de uma época; retrata, através da palavra, cenários e contextos sobre acontecimentos. A literatura é um testemunho de resistência, denúncia e esperança. Portanto, a escrita de Damascos Feridos iniciou quando fui despertada por sentimentos de horror e repugnância diante da guerra que despovoou, devastou, esquartejou, arrasou e destruiu a Faixa de Gaza. Enchi meus olhos de indignação e sofrimento com aquele horror. Assim, tive a consciência do sofrimento; tomei a dor da Palestina como minha e, cada verso escrito, ensejava o desejo de que a guerra tivesse um fim, de vez. As palavras são armas de combate e me senti como se estivesse lá, em meio aos escombros, lutando, defendo e salvando crianças, mães e todos os feridos que necessitavam de socorro. Não duvidei das palavras, da tamanha força que delas emana. Prossegui escrevendo e quanto mais escrevia, mais ainda queria escrever, porque precisava “salvar” Gaza. E sinto que até hoje essa necessidade de proteger e salvar Gaza não acabou. Por mim, continuaria escrevendo, sem parar, na tentativa de deter o genocídio contra o povo palestino. A guerra é uma abominação, uma barbárie. É preciso pôr fim à guerra.

Isso é possível através das palavras, da poesia?

O poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade em A rosa do povo tece um profundo diálogo com a segunda guerra mundial: “Melancolias, mercadorias, espreitam-me. Devo seguir até o enjoo? Posso, sem armas, revoltar-me”? A palavra, por si só, pode não estancar uma guerra, mas ela nos contagia por um sentimento de resistência, justiça e esperança diante de imagens insuportáveis de cadáveres e de sobreviventes esqueléticos nos campos de guerra. Através da palavra, reivindicamos a liberdade e a paz para aqueles que se encontram martirizados no cárcere e nos porões do submundo, controlados pelas mãos dos ditadores e dos tiranos.

 

Notas da Sarah:

Encerrar esta entrevista com Mírian Freitas é reafirmar a poesia como prática ética e horizonte de humanidade. Ao falar da Palestina, sua voz desarma fronteiras e convoca uma empatia sem atenuantes: aquela que nos obriga a reconhecer a dor do outro como parte incontornável da nossa própria história. Como leitora e entrevistadora, saio desta escuta mais certa de que cada palavra pode abrir uma fresta de dignidade, e de que sustentar espaços para vozes como a de Mírian é, também, um modo de resistência: fazer da linguagem um lugar onde a memória não se rende e a esperança continua, teimosamente, a nascer.

Obrigada por ler o poema não vem. Ele vem, sim, mas à sua maneira. E nos transforma!

Sarah Munck.


Informações

Este texto é um trecho de um livro já publicado

https://open.substack.com/pub/sarahmunck/p/da-serie-entrevistas-875?r=21xm4z&utm_campaign=post&utm_medium=web&showWelcomeOnShare=false
    https://sarahmunck.substack.com/
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