Apresentação

Em Pássaros na Janela, o terror psicológico se instala silenciosamente no cotidiano de uma família à beira do colapso. O conto acompanha Davi, um homem que tenta manter as aparências enquanto lida com a falência emocional, a doença do filho, a deterioração do casamento e a culpa insuportável. Este é um dos meus contos inéditos que fazem parte de uma coletânea ainda não publicada.


Pássaros na Janela

“Eu quero o divórcio, não aguento mais viver assim!”

O grito dela foi abafado por um estrondo muito alto contra o vidro. Ambos se assustaram, tanto o homem quanto a mulher, e olharam na direção das grandes marcas no vidro trincado atrás deles, mas quando notaram que não deveria haver nenhum tipo de perigo iminente, os ombros relaxaram. 

Marcela ainda estava sentada na beirada da cama, agora limpando as lágrimas com as costas da mão. Davi, por outro lado, passou pelo cômodo indo em direção à sacada do apartamento para verificar o estrago.

Notou a mancha escura na porta de vidro, escorrendo para baixo. 

Olhou para o chão buscando o que havia batido com tamanha violência contra a porta até os olhos esbarrarem no amontoado de penas e sombras amolgado contra o piso. 

“Foi só um pássaro.”, constatou, embora a visão fosse perturbadora. Mas agora, havia uma questão maior a resolver.

  

 

O cantar dos pássaros era uma serenata bem vinda ao amanhecer, combinava com a casa de subúrbio, com suas  plantinhas no jardim e espaço para as crianças brincarem. 

Haviam se mudado há pouco mais de dois anos, logo após o quase divórcio, deixando para trás a vida da cidade grande, buscando mais tranquilidade para sua esposa e família.

As duas crianças tinham seis e oito anos, dois meninos, sendo o mais novo uma criança bastante doente. 

Seu choro gerou uma revoada entre os animais alados. 

“Eu não quero ir pra escola!”, manhou.

A esposa suspirou. 

“Kelvin, por favor, a mamãe não quer brigar com você hoje.”, disse limpando o rosto da criança.

O menino olhou para a mãe, os olhos avermelhados, cheios d’água, e então jogou o pote com comida no chão. 

“Não!” 

“Kelvin!”, Davi chamou a atenção, incomodado com a cena. 

Juntou o pote de comida do menino com uma mão, segurando sua xícara de café com a outra. 

“Pode deixar que eu limpo”, ofereceu, enquanto a esposa terminou de dar café da manhã para as crianças e pediu ao mais velho que pegasse as mochilas da escola.

“Que bom que não vou precisar te pedir o mínimo.”

Marcela bufou sem paciência e o comentário pareceu criar um nó em seu esôfago, mas fingiu ignorar e a observou, pela janela da sala, correndo com as crianças para o carro. 

Foi para a cozinha lavar a louça e, por um tempo, se concentrou no som da água escorrendo e no coral de pássaros que voltara. 

Desempregado, não custava nada fazer a organização da casa deles, estava dando o seu melhor. A água morna era apreciável, assim como o sabão escorrendo entre os dedos.

A perda do emprego após a mudança o pegou de surpresa. As contas se acumulavam, a esposa dobrou a carga horária para para que sua esposa dobrasse a carga horária de trabalho para pagar os medicamentos do filho mais novo. 

Ergueu os olhos, observando o céu azul, o movimento das folhas da árvore causado pelo vento e a luz brilhante do sol tocando suas mãos sob a água. 

Baixou de novo os olhos para enxaguar a louça. 

Precisava comprar os remédios naquela tarde, inclusive. 

Saltou de susto com o barulho. 

O pássaro ficou, pelo meio segundo mais lento da história, ainda consciente com os olhos abertos encarando Davi. Seu bico estava quebrado e parte da língua amassada contra o vidro, as asas tortas enquanto algumas penas flutuavam ao seu redor e tanto as asas quanto  uma das pernas tinham fraturas expostas. Tudo parecia um grande quadro em uma foto de parede contra a janela da cozinha. 

Os olhos do animal se fecharam devagar e ele caiu para trás, desgrudando pouco a pouco, deixando para trás uma mancha de sangue e sujeira.  

Davi limpou e, com uma sacola plástica escura, embrulhou o cadáver e colocou junto ao lixo na parte da frente da casa. 

À noite, Marcela notou que havia um arranhão na janela e Davi explicou o ocorrido. 

“Esses pássaros são uma praga e, ainda por cima, estão entre muitos.”

No dia seguinte, durante o café da manhã, as crianças gritaram e os adultos sobressaltaram-se com o novo baque no vidro. 

“O que foi isso?”, quis saber o menino mais velho. 

Desta vez, não havia manchas, mas ao irem para o jardim, o pequeno passarinho marrom se encontrava de barriga para cima movendo uma patinha em um espasmo mórbido.

“Coitadinho…” lamentou a criança mais nova.  

Davi passou a tarde buscando quem trocasse o vidro trincado. Depois de algumas frustrações, que iam desde a falta de horário até a falta do tamanho e modelo adequado de janela, acabou por encontrar na internet um número promissor. 

“Virão trocar amanhã.” avisou Marcela durante o jantar. 

Ao se aproximar da pia, Marcela arfou. Outro pássaro bateu na janela semiaberta.

Parte do corpo havia ficado preso, contudo, no espaço vago entre o batente e o peitoril. Então, ali jazia seu corpo enquanto a pequena cabeça de bico fino e comprido havia rolado para dentro da pia.

Na manhã seguinte, após terem trocado a janela, Davi convocou seus filhos para recortarem pequenos pássaros de papel coloridos e colarem na janela nova.

“Isso vai mostrar aos passarinhos que eles não conseguem atravessar o vidro.”, explicou.

Os meninos estavam especialmente quietos. 

“Mas e se não for o vidro? E se for algo mágico que atrai os pássaros?”, indagou o mais novo.

“Que bobagem, Kelvin. Isso de magia não existe.”, rebateu Miguel.

“Então, você acha que é realmente o vidro, filho?”, Davi até  sorria um pouco, achando divertido o debate entre as crianças.

“Coisas ruins não vêm e vão por causa de vidro ou magia”, disse Miguel. “Elas acontecem por causa das pessoas.”

Davi largou a tesoura, agora genuinamente interessado na lógica do filho mais velho. Ele terminou de recortar mais uma figura no papel amarelo. 

“Se Kelvin está doente, trocar um curativo não resolve se o problema está dentro dele.”

Kelvin estava em silêncio e, apesar de parecer compenetrado em sua tarefa de recorte, o pai sabia que ele também estava ouvindo atentamente a explicação do irmão.  

“…A doença também continua batendo no peito dele e, em algum momento, ele vai morrer, como os pássaros.”

“O quê? Que coisa horrível de se dizer, Miguel!”

Kelvin começou a chorar.

“Peça desculpas ao seu irmão!”

“Eu não quero morrer!”

“Peça desculpas ao seu irmão.”

“Mas é verdade!”, replicou Miguel antes de levar do pai um tapa na cara.

Marcela entrou na cozinha nesse momento.

“O que está havendo aqui?”

Entre os choros, ela correu buscando o filho mais novo no colo e se colocando entre Davi — que estava com o rosto vermelho e as mãos fechadas, mas trêmulas — e Miguel que tinha a face para baixo, uma mão sobre o lugar onde o tapa havia deixado uma marca vermelha e as lágrimas escorrendo. 

No dia seguinte, várias vezes, as aves ignoraram os enfeites coloridos no vidro, marcando-o com a sujeira de seus corpos que batiam um a um contra a janela.

“Você vai com o Kelvin ao médico. Não esqueça do medicamento novo.”, alertou Marcela. 

Os dias oscilavam entre paz e caos. Meses depois, a janela já havia sido trocada três vezes, na necessidade de economizar, haviam deixado ela riscada mesmo. Era assim entre a família, uns ruins e outros melhores, apesar das marcas, resistiam.

“Pai, o Kelvin tomou o remédio errado!”

A criança fazia um grotesco som na tentativa de puxar o ar, as mãozinhas sobre o peito enquanto as costas arquearam de forma a parecer que seus pulmões e seu coração explodiriam de seu magrelo esqueleto.

Davi correu em sua direção, os olhos arregalados, pânico, impotência, incerteza do que fazer. 

Enquanto a criança tinha os lábios abertos, como se estivesse engasgando, e no reflexo de seus olhos castanhos havia dor e medo. Foi agarrado por seu pai, levado correndo para o carro, e a mãe veio em seguida sabendo que precisavam chegar na emergência o mais rápido possível.

Ao redor, uma confusão: o chiado eterno de Kelvin tentando respirar, Miguel chorando, o próprio Davi gritando em prantos para o filho, tentando garantir que tudo ficaria bem.

Mas, em algum momento, os sons pararam.

Davi não ouvia nem mesmo sua própria voz. 

Não haviam os sons do hospital, nem o sinal da emergência, nem a voz de Marcela — fosse de sua dor, fosse de sua raiva —, não havia o desespero de Miguel, muito menos o som da voz do médico e das enfermeiras colocando seu filho na maca.

Não havia também o som da máquina anunciando a parada cardíaca. 

Não havia som de missa, nem o som da tampa do caixão batendo. Não havia os gritos de desespero de uma mãe sem filho, nem de avós sem neto, nem de familiares que haviam perdido uma criança tão pequena.

Davi também não ouviu o som da porta da frente fechando, nem de Marcela ligando o carro ao ir embora com Miguel. 

Foi no meio de uma tarde, ainda daquela semana, que o cantar dos pássaros no jardim o fez perceber que ouvia de novo…

Ele andou até a cozinha, notando o belo dia primaveril que fazia do lado de fora da casa. 

Como ele deixou tudo isso chegar naquele ponto? Não tinha mais nada: Nenhuma motivação, nenhuma expectativa — seu futuro era uma incógnita —  e, ao menos antes, tinha sua família para tentar direcionar o que fazer. 

Uma ave voou direto contra o vidro, caindo tonta do lado de fora. 

Estava desempregado e sem nenhuma previsão de um bom emprego graças a uma série de decisões mal tomadas no passado. 

Outro pássaro veio diretamente contra o vidro, este bateu mais forte e escorreu, com um ruído incômodo pelo vidro até cair.

Havia se afastado de sua família e amigos…

Um pássaro menor deixou uma mancha de sangue na janela desta vez. 

 …Perdido o carinho e respeito de sua esposa e antiga melhor amiga. 

O vidro estremeceu, mas a nova mancha de sangue escuro parecia um balde de tinta sobre ele. 

Estava largado no meio do nada, recheado de dívidas. 

Queria fugir, queria escapar e não sabia para onde.

Havia deixado seu filho mais novo morrer. 

Mais criaturas aladas, uma a uma, batiam como um bombardeio na janela da cozinha deixado novas camadas de sangue fresco, penas e pedaços de ossos, patas e bicos. As batidas quase ritmadas como uma forte tempestade atingindo a casa.

Os cadáveres de todos os tamanhos, com penas coloridas criando um canteiro novo abaixo do peitoril como flores mórbidas.  

Não importava o quanto trocasse a maldita janela, a maldita casa, não conseguia trocar a si mesmo. Miguel tinha razão.

Ele era o problema. 

E encarava horrorizado e paralisado enquanto cada um dos pássaros batia e morria contra a janela em frente ao seu rosto.


Informações

Este texto é original e foi publicado primeiramente no litera mondru.

    https://lunecria.com.br/
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