Apresentação

O texto A Onça ganhou, em 1º lugar, o concurso de Contos da Associação Brasileira das Instituições de Pesquisa Tecnológica e Inovação (Abipti)


A onça

Meu bisavô já viu uma onça-pintada. Quem me contou a história foi meu pai, que ouviu direto do pai dele. Eu não o conheci porque ele morreu cedo. No meio de um incêndio que matou ele e a onça, me contaram. Não sei mais quem foi me contando esses detalhes, mas a história que temos na nossa família é essa: um dia meu bisavô Bento estava no meio do mato, o fogo veio não se sabe de onde e ele ficou preso, no matagal, até que uma onça desavisada foi parar no meio do incêndio também.

No fim, nenhum dos dois escapou. Meu bisavô foi encontrado carbonizado ao lado do felino, abraçados tão forte que o corpo achado era animal-humano. Hoje já não existe onça por aqui.

A gente sempre foi uma família de pantaneiros, mas o Pantanal também já não existe.

Talvez seja por isso que sempre quis ser pesquisador: pelo eco que essa história causa em mim. Mas desviei do meu objetivo principal por uma proposta que beirava a antiética e a ofensa a Deus. Por que aceitei? Bem, era uma ofensa ao Criador e seguia trilhos inadequados para a conduta científica, mas também era uma forma de redenção para a humanidade.

Vou resumir e começar os fatos pelo ano passado, quando o doutor Sales, chefe do projeto, veio correndo me chamar em minha sala:

— Deu certo, conseguimos!

Já fizeram algo parecido com a ovelha Dolly e já pensaram em fazer isso com os dinossauros, com os fósseis mais íntegros que foram encontrados. Mas nós fizemos com a onça-pintada. Reviver seu genoma, criar de novo a espécie. Você vai concordar comigo, se pesquisar rapidamente na internet “pantanal em chamas” e ver algumas imagens: foi há quase um século, mas olhe bem e me diga se até mesmo Deus não aprovaria esta nossa maneira de pedir perdão?

— Ela é linda — eu disse para a fêmea diante de meus olhos. O felino grunhiu, os olhos abrindo devagar, as orelhas já alertas. 

— Onde está o Soro?

— Na refrigeração — respondeu Sales. 

Escolhemos manter a onça em segredo até termos certeza que não haveria nenhuma modificação celular. Eu a alimentava diariamente. Aos poucos recriamos um espaço semelhante ao selvagem para que ela capturasse a sua própria presa.

Estávamos criando o futuro. 

Na última semana descobri algo ainda mais espetacular. Houve um acidente no laboratório com o Soro. Durante o manejo, ele respingou em meu punho. Nos dois dias seguintes percebi alterações em minha epiderme. Não comentei inicialmente com Sales, mas fiz uma raspagem para verificar o que estava acontecendo: o Soro estava redefinindo a minha estrutura biológica.

Tive que raspar toda a pele atingida pelo líquido para conseguir impedir as modificações.

Quando contei ao Sales ele não acreditou até ver com os próprios olhos as imagens no microscópio. Nossa descoberta iria revolucionar o entendimento da biologia dali em diante. Mas até aquele momento, preferimos ter cautela nas nossas divulgações. Ainda assim, não demorou para um influente Senador descobrir parte da nossa pesquisa. E demorou menos ainda para que ele quisesse o contato direto com Pandora, o nome que tínhamos dado a onça.

Relutamos, é claro, mas era preferível evitar o escândalo que poderia ser causado caso eles nos delatasse para a Comissão de Ética. O projeto trazia ganhos incríveis, como já pôde perceber, mas não tinha caminhado nos trilhos do que é bem quisto pela sociedade científica.

O político de repente ficou fissurado com o nosso felino, dizia que mal poderia esperar para que Pandora estivesse grande o suficiente, no auge de sua natureza selvagem.

— Grande para o quê, Senador? — cheguei a perguntar um dia.

— Ora, para conhecer o mundo — ele riu. Variações dessa mesma conversa foram repetida inúmeras vezes e sempre eu ficava com a mesma sensação ao ver a malícia em seu sorriso. — Veja bem, prefiro que isso continue em segredo. Ela é arisca? Boa de caça?

— Sim, a criamos para a vida selvagem. — O Senador ria quando eu dizia isso e eu percebia em seus olhos um brilho predatório. Seu olhar sempre era mais perigoso do que a da própria Pandora. 

Em sua última visita ele levou o filho mais velho. Um moleque arrogante com a mesma feição de seu pai. 

— Será divertido, não é, pai?

— Sim, seu avô sempre me contou que elas são difíceis, as mais difíceis de se…

Encarei-os e a conversa ficou suspensa no ar. Comentei com Sales que estava desconfiando daquela situação e do interesse daquele homem e de seu filho no nosso projeto. Mas Sales avaliava que para ele era apenas uma maneira de ganhar votos.

— Ele quer algo diferente, Sales. Algo ruim — alertei.

O Senador começou a nos exigir que criássemos outra onça. Explicamos que não era tão simples, que Pandora estava em observação e precisávamos saber se não havia algum erro na pesquisa, algum erro biológico na recriação da espécie, não podíamos nos precipitar. Ele insistia. Mas pelo menos essa única coisa Sales e eu conseguimos impor: nada de criar outra onça até finalizarmos o levantamento de dados necessários com Pandora.

As visitas dele ao laboratório ficaram cada vez mais inconvenientes. Ele gostava de ficar observando o ambiente sintético, perguntando a extensão do espaço ocupado pelo felino. Foi quando Pandora completou dois anos que eu me interessei em pesquisar um detalhe da vida do Senador que até então não me tinha ocorrido. Joguei seu nome na internet. A vida dele era discreta, sem escândalos. Mas quando estava para desistir de minha verificação, encontrei uma reportagem não sobre ele, mas de seu pai. Um ex-Senador que era apaixonado pela arte da caça.

Na reportagem se lia: Senador do Mato Grosso mata última onça-pintada de reserva ecológica. Parlamentar já se declarou defensor da caça predatória a animais silvestres e no último ano caçou o último espécime protegido que era abrigado no coração do Pantanal…

Meus batimentos aceleraram quando recordei a conversa com o Senador naquela tarde: 

— Ela é feroz? Como se comporta quando é a presa?

— Ela nunca é a presa. Está no topo da cadeia alimentar — expliquei.

Tinha achado, no momento, que era apenas o comentário burro de um político que não entendia nada do meio ambiente, como tantos outros, mas de repente percebi qual era sua pretensão. Peguei meu carro e voltei para o laboratório. Tentei ligar para Sales, que tinha ficado no centro de pesquisa até tarde da noite, mas ele não atendeu. Quando entrei na área restrita do centro de pesquisa, que apenas eu e Sales tínhamos acesso, encontrei gotículas de sangue pelo chão. 

Sales estava desmaiado no canto da sala. De frente para o computador, o filho do Senador assistia pelas câmeras Pandora em seu habitat natural e o pai dele destravando as portas e entrando com um rifle nas costas e óculos de visão noturna.

— O que estão fazendo?!

O adolescente se assustou ao se virar, mas apenas disse que seu pai iria mostrar a ele como se caçava.

— Você está brincando? ELA É A ÚNICA ONÇA-PINTADA DO MUNDO!

— Eu sei — respondeu. — Mas depois vocês irão fazer outra para nós. E então será minha vez de dar continuidade ao legado. Esse é um ritual importante para a minha família: um homem só é homem quando mata sua primeira onça…

Escuto o primeiro disparo do rifle.

— Vocês são loucos!

Mas o moleque deixou de prestar atenção em mim e se voltou para os passos cuidadosos de seu pai perseguindo Pandora no monitor. Não demorou para que outro tiro fosse disparado. Pandora não seria uma fera tão difícil de abater, embora caçasse as próprias presas ela não tinha contato com outros animais de grande porte, nem tinha sido criada em um bando para aprender o que era preciso com sua mãe.

Entro no refrigerador e pego o Soro. Minhas mãos estavam trêmulas em parte pela ira e em parte pelo desprezo que o filho do Senador tinha em sequer se preocupar com o que estava fazendo.

— Por que essa cara, doutorzinho? Já acabou, a onça já era — ele apontou para o monitor, que mostrava o pai carregando Pandora abatida em seus ombros. Um rastro de sangue pingando da boca do animal, sujando a roupa camuflada dele. As presas a mostra na boca aberta. — Eu preferia acabar com vocês também, mas meu pai disse que você e o Sales precisam ficar bem, para recriar o experimento e podermos caçar quantas vezes quisermos. 

Eu reagi no impulso: me joguei sobre ele e apertei a agulha do soro em seu peito, perto do coração. O moleque caiu no chão, se contorcendo.

— O que você fez? Isso é veneno?

Seus olhos reviraram e uma baba escura saia de sua boca. Quando ele parou de se mexer, pensei que o tivesse matado. Mas seu corpo foi se transformando. A pele derretendo, os músculos sobressaindo-se, os ossos mudando a fisionomia. Ele estava morrendo e ao mesmo tempo se metamorfoseando. As roupas ficaram rasgadas em um canto, manchadas de sangue, cartilagem e pele.

Não sei quanto tempo leva para o menino se erguer, quadrúpede, encarando-me com olhos doentios, junção de humano e fera. Seu corpo continua se transformando e cada vez ele se parece mais com uma onça-pintada adulta.

Ouvi o som do Senador saindo do ambiente sintético. Ele arrastava Pandora por uma corda amarrada nas quatro patas.

— Ora, não esperava que você fosse voltar hoje — diz, me olhando com um sorriso. 

Ele finalmente encara seu filho, que já havia perdido qualquer semelhante com um corpo humano e era apenas um felino, maior que Pandora e mais musculoso.

— Por essa eu não esperava — disse ele. — Quer dizer que vocês fizeram outras onças e não me contaram? Um macho, ainda por cima. — Ele encara o felino que rosna, os olhos violentos. — Filho, venha vê, é sua vez de caçar… — chama.

Mas ele olha para os lados e não encontra o menino. A onça ruge, encarando ele, que ainda segura a corda que leva Pandora pelas quatro patas, deixando um rastro de sangue pelo laboratório.

O Senador ajeita o rifle, e antes que o felino salte sobre ele, puxa o gatilho. 

O disparo é certeiro: atinge o meio dos olhos do filho.


Informações

Este texto é original e foi publicado primeiramente no litera mondru.

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