A tia

A tia era uma falsa. Certeza que, se duvidar, foi ela mesma que tinha matado o tio, dando-lhe veneno diário. Não que ele fosse santo. Era outro. Mas tinha uma legião que o defendia: coitado, casado com uma mulher dessas, diziam. No entanto, ele também não era lá homem que se admirasse.
Só que a tia era cobra mesmo, às claras, sem esconder de ninguém. Um dia estava eu brincando na sala quando, ensandecida, a mamãe chegou da rua. Colocou-me contra a parede e me perguntou que história era essa de ingratidão e das coisas que eu havia dito logo para a irmã dela. Mas eu não fazia ideia do que ela falava.
Mamãe chorou de raiva e angústia e eu sem entender nada.
Acontece que a tia havia contado as piores mentiras, sem que uma palavra tivesse saído da minha boca. Jurei à mamãe nunca ter dito tais coisas sobre ela e o papai, mas a mágoa já havia sido feita.
Depois a tia apareceu lá em casa, toda sonsa, chamando-me para passear. Eu não queria ir. Vai, disse mamãe num sussurro quieto. Não tive escolha.

No caminho, pensei em confrontá-la, dizer mesmo sem rodeios: que coisas são essas que disse à mamãe, sua mentirosa?

Mas não falei nada, de covarde que era. Passei o caminho com o coração a doer e os olhos a encher e depois secar, sem que uma lágrima caísse.
Neguei o presente que ela queria me dar. Meu desejo era me vingar da tia, xingá-la inteira. Mas eu não era disso. Caso uma palavra feia saísse da minha boca, mamãe a empurrava de volta para dentro com um tapa. Quase já tinha perdido um dente, minha sorte é que era de leite. Por isso, nunca dizia palavrão. Mas olhava para as pessoas e pensava:
“Certeza que essa daí foi expulsa do paraíso”. A tia tinha sido.
O filho dela também não era alguém exemplar. Chegava saltitante depois da páscoa, com chocolate guardado nos bolsos e na mochila. Quantos ovos você ganhou?, esnobava. Eu não era de mentir, pois, da mesma forma que mamãe me fazia engolir qualquer palavrão, ela me obrigava a cuspir com uma sova qualquer mentira.
Tive que aprender outras maneiras de me safar. Até hoje não minto muito. Mas, mesmo assim, olhava para meu primo e dizia que sim, ganhei, sem especificar o quê, afinal, alguma coisa havia ganhado, ou bolo ou doce ou balinha que imitasse chocolate.
Achava um insulto aquele ar esnobe do primo. Ele e a tia tentando nos tornar menores. Tinha vontade de gritar que éramos o lado pobre da família.

Mas isso serviu de alguma coisa, pois, depois de tanta raiva que eles me fizeram, eu nunca me aproximei nem do primo, nem da tia. Mesmo assim, ela não me deixava em paz. Em certo Natal, quando jovem, todos os parentes vieram pra nossa casa.
Aproveitei e convidei minha amiga, um ano mais nova que eu.
Nós duas ficamos à porta cumprimentando quem entrasse. Dos parentes, veio também uma prima de longe, toda acanhada. Mas eu a abracei e comentei como ela estava linda. Minha prima sorriu satisfeita e entrou.
— Achou mesmo ela bonita com aquele vestido? — perguntou
minha amiga quando ela já estava longe.
— Ah, não seja tonta, Magui, ela está horrível.
— Então por que elogiou?
Minha amiga era boba.
— Porque é assim que se faz. Aprendi observando mamãe.
Ela elogia as amigas mais e mais, conforme estiverem mais feias.
— Não é melhor não dizer nada?
— Claro que não. É assim que gente adulta se comporta. E já somos moças.
Eu tinha que ensinar tudo a Magui. Imagine que, aos quinze, ainda acreditava em cegonha. Até eu explicar que só se chamasse o negócio do menino de cegonha. Ela ficou horrorizada e contou tudo para a mãe. A vizinha, no outro dia, foi bater lá em casa. Foi um escândalo. Mamãe ameaçou contar para o pai tudinho. E eu quieta olhando com raiva para Magui. Virei escrava doméstica por mais de um mês.
— Não fique com raiva de mim, não quis te entregar — se defendia Magui, mas eu não respondia, continuava areando as panelas. No outro dia, ela voltava: — Só perguntei para minha mãe como era. — Eu continuava calada. Não se podia mesmo confiar nem em uma amiga.
Depois do castigo, apareceu a tia. Toda fingida. Mamãe havia contado tudo para ela, fez um alvoroço só porque eu já sabia o que qualquer um da minha idade conhecia e já tinha até feito. A tia, toda solícita, disse que me vigiaria também. Era preciso ficar de olho nos jovens durante esses tempos de Sodoma.
Fiquei a me morder de ódio no quarto. Nem saí para pedir a benção, mas ouvi cada palavra que ela dizia, plantando ideias na cabeça de mamãe.
Passados os dias, as coisas voltaram a se acalmar. Meu primo começou a aparecer sempre lá em casa. Para nada, era um à toa. Reconquistei aos poucos a liberdade, saí algumas vezes, fiz novas amizades. Mas, um dia, Magui tornou a aparecer, os olhos vermelhos e inchados, soluçando pelos cantos. Contou-me o que acontecera, pois eu era sua única e verdadeira amiga. Até pensei em lhe devolver na mesma moeda e fazer o que ela fizera comigo.
Mas eu não era dada à fofoca.
Aconselhei-a. Entendia o que estava passando. Eu também me descobria apaixonada e era normal nos enganarmos assim.
No entanto, nem tive tempo de aprontar, como ela tivera, pois, passado um mês, reapareceu a tia para conversar com mamãe.
Um dossiê completo contra mim. Mamãe não me deu defesa e a irmã dela misturou tudo com sua teia de mentira. Mas eu não era aquela que ela pintava, podia não ser celibatária, mas as coisas que a tia dizia… Fiquei puro ódio. Depois a tia se despediu com um sorriso e foi embora. Minha vontade era furar os olhos radiantes de alegria que ela esbanjava.
De noite, mamãe me chamou pra conversar. Levei um susto quando descobri que o pai estava na sala, sabendo de tudo. E havia acreditado piamente nas palavras da tia, que todos já sabiam ser predisposta a exageros e enganações. Mamãe me disse coisas horríveis. Chorou, até. Papai só olhava para mim.

Calado.
Quieto.

Pura decepção.
— Não acredito que creem nela e duvidam de mim, ela é uma falsa, uma cobra!
Mas mamãe, irada, gritou:
— Você é igualzinha a ela, deveria ser filha dela, não minha. Ela que tinha que pagar esses pecados!
Meus olhos arderam. Nada até ali tinha doído tanto. Ser comparada à tia. Corri para o quarto e me tranquei. Chorei de raiva a noite inteira.

No outro dia, teve almoço de família. Fui arrastada, carregando minha vergonha. Lá descobri que a irmã de mamãe havia contado suas mentiras para todos. Eles olhavam de esguelha para mim e para meus pais. Meu primo veio me caçoar, todo risos, com o mesmo veneno da mãe.
— Deveria ficar calado — disse logo de pronto. — Não tem medo que eu conte para todos que levou Magui pra fazer um aborto? Ou que fuma droga no colégio?
Ele embranqueceu e sumiu durante todo o resto do dia, que não vi nem sombra. Minha raiva era ser julgada por mentiras. Não tinha sido daquele jeito que as coisas aconteceram. Mas quem me dava voz? O primo podia tudo, se brincar ia para os bordéis com os tios. Claro, era homem.
Voltei para casa, sob a acusação de todos aqueles olhares.
Papai, quando chegamos, me dirigiu a primeira palavra desde a véspera. “Que vergonha, ouvir tudo isso por sua causa”.
Entrei no quarto e chorei. Era pura fúria. Cheguei a fazer promessa de joelho e tudo: se a tia morresse, até me tornava uma pessoa melhor.
Quando consegui dormir, era tarde da noite e eu ainda fervilhava rancor.
Contudo, de madrugada, a casa se agitou e fui obrigada a sair do quarto para ver o que acontecia. Mamãe chorava na cozinha e eu pensei que seria esculachada de novo. Mas mamãe seguia aos prantos e papai era incapaz de consolá-la.
— O que houve? — perguntei.
— Acabaram de ligar — mamãe começou, mas depois soluçou,
soluçou, sem recobrar a voz.
Então papai olhou nos meus olhos:
— Sua tia… — engoliu em seco. — Ela morreu.


Informações

Este texto é um trecho de um livro já publicado

Livro Eu que chorei este mar

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