Apresentação

No Dia Nacional do Escritor, que bem poderia ser o Dia Nacional da Escritora que resiste, Sarah Munck conduz uma entrevista com Lara Galvão e Gisela Maria Bester, reunindo duas vozes femininas cuja escrita atua como gesto ético de escuta, denúncia e reinvenção. Publicado na plataforma “o poema não vem”, o bate-papo mergulha nas relações entre poesia, corpo, ecologia e justiça, revelando como ambas autoras criam a partir da urgência do tempo presente. Na conversa, pulsa o que a poesia tem de mais urgente: a coragem de nomear o indizível, a força de transgredir narrativas, a delicadeza de escutar o que ainda vive sob os escombros. Que as palavras nos acompanhem como brasas e sementes: inquietas, férteis, insubmissas.


Entrevista com Lara Galvão e Gisela Maria Bester

Lara Galvão, autora do livro Granada (Cachalote, 2025), entrelaça memória, cuidado e transgressão em poemas que interrogam as fronteiras entre o íntimo e o político. Granada é um livro que tensiona silêncios, provoca sentidos e explode suavemente nas mãos do leitor.

Gisela Maria Bester, autora de Pinte-me de Azul! (Mondru, 2023) e Sorrir, esse sacrifício (Toma Aí Um Poema, 2024), fala sobre seu percurso com a escrita literária, nascido de um momento de reinvenção pessoal, e as conexões profundas entre sua atuação no Direito e a ética poética que a move.

Foto: arquivo pessoal de Lara Galvão

Lara, em Granada, há uma explosão de mitos e vozes femininas que retornam para dizer o que foi silenciado. Como foi o processo de escolher essas figuras e reescrevê-las a partir de um corpo poético insurgente?

R. A real é que essas figuras foram chegando até mim, me atormentando até eu diria rs. Eu me lembro de ter feito uma oficina com a Luiza Romão, autora de “Também guardamos pedras aqui”. A gente fez alguns exercícios sortidos e o nome de Ifigênia foi chegando repetidamente, povoando minha cabeça. Eu já tinha alguns poemas que fariam parte do livro, mas acho que ali ele começou a tomar um rumo, um sentido. Granada é fruto de incômodos vários. Me incomodei com a história de Ifigênia. Me incomodei com a história de tantas personagens da literatura colocadas como símbolos de auto sacrifício feminino a serviço das guerras dos homens, passivas, dóceis. Ao mesmo tempo, fui encontrando vestígios contrários na escrita feita por mulheres, ali elas eram insubmissas, ardentes, desejantes de Vida. Pude me identificar com esse desejo. Foi um frenesi ler Enheduana, a primeira poeta da história, e me identificar com coisas escritas há mais de 4.000 anos. Fui me misturando e dialogando com elas.

Também foi através da Luiza que encontrei o trabalho da Mónica Ojeda, “A História do Leite” foi uma baita referência. No livro ela reescreve a história de Caim e Abel com duas figuras femininas intensas no centro e pontua “destruição é criação”, mexeu comigo em lugares sensíveis. Pensando agora, foram figuras femininas vivas que trouxeram essas outras vozes da mitologia e da literatura, amigas, professoras, pessoas dos movimentos feministas e queer. Muito do livro foi nutrido enquanto eu fazia aulas como ouvinte de uma disciplina chamada “O que treme quando a mulher toma a palavra”, com as professoras Danielle Magalhães, Ana Kiffer e Flávia Trocoli. Acho que rola uma busca por reescrever o passado na arte feita por mulheres e por outros grupos historicamente oprimidos, uma forma de construir outras saídas.

A linguagem do livro é visceral, como se cada verso tivesse sido arrancado da carne e da história. Em que medida a escrita, para você, se mistura com o corpo e com a urgência do agora?

R. Faz muito sentido pensar que eu estava escrevendo granada no mesmo momento em que aprendia a lidar com uma condição inflamatória no meu corpo, a endometriose. A condição inflamável do livro e do corpo acabaram se conectando. Eu tava sentindo muita revolta com esse corpo, esses órgãos. E também em como o mundo percebe esse corpo e outros corpos de maneira tão limitante. A endometriose é quando um tecido que deveria ficar preso ali no útero extrapola esses limites, eu também queria buscar outras saídas. Além disso, acredito que seja impossível a visão de uma escrita desconectada do corpo, totalmente racional, mental ou sei lá. A escrita pra mim é muito sensorial, vulnerável mesmo. E a poesia começou pelo corpo, com a voz. É com esse dispositivo estranho que escrevemos.

O livro fala de rupturas, mas também de recomeços. Que forças movem sua escrita hoje? O que você gostaria que explodisse de vez e o que gostaria de ver nascer a partir dessas ruínas?

R. Acho que exorcizei alguns fantasmas em granada, pelo menos aqui dentro. O mundo segue um caos, guerra, crise climática, capitalismo mais que tardio etc. Queria que tudo isso ruísse, claro. Eu ainda sinto raiva, mas não era sobre essa raiva e hoje é ainda menos. Acho que consegui alguma porcentagem de paz com meu corpo e diria que encontrei algumas sementes, mas sigo tentando encontrar alguma outra coisa que ainda não existe. Esperança talvez, essa palavra que hoje parece tão fora de lugar. Sonhos possíveis de serem vividos coletivamente e outros mais egoístas. Tenho vontade de viver o palco, isso também tem movido minha escrita. Não sei se era exatamente o que a pergunta pedia, mas bem…

Depois da escrita intensa de Granada, há outras vozes ou imagens que têm chamado você para um novo livro? Que caminhos criativos você imagina explorar nos próximos projetos?

R. Vita, ou a própria voz. Tenho tido vontade de criar universos mais fantásticos e delirantes na escrita. Ando organizando versos pra uma plaquete narrativa, uma voz poética obsessiva persegue quem ela se refere por “mulher titã”, chamei essa mulher de Vita. Uma figura que talvez represente a pulsão de vida, a ideia do palco e a busca pela própria voz. Os esboços sempre começam pela newsletter, meu espaço de movimento e experimentação que esse ano trocou de nome pra “boletim babel”. Também já faz um tempo que me preparo pra viver a poesia através do som, acho que esse momento tá mais perto agora. Me interesso muito pelo spoken word com base musical, quero chegar nas pessoas através dos ouvidos e ver o que acontece.

Foto: arquivo pessoal de Gisela Maria Bester

Gisela, escrever é para você mais uma forma de escuta, uma maneira de denunciar injustiças ou uma tentativa de continuar viva por meio da palavra? Como você sente a escrita na sua vida hoje?

R. Sinto a escrita em minha vida como uma mistura de tudo isso, ao sempre ter tido apreço pela escuta ativa, ao denunciar injustiças e praticar inclusividades nas muitas décadas de trabalho no Direito, movida que sou pelo desejo de equidade, pela ética do cuidado, pela alteridade, pelo humanismo, pelo ambientalismo e pelo animalismo. Os outros princípios que gosto de observar, como os do feminismo, da sororidade, da dororidade, da empatia, da justiça social e ambiental, da ecologia integral, do antiespecismo, da sustentabilidade, e tantos mais, vêm a reboque dos primeiros listados, e vejo-me desafiada diuturnamente por todo esse emaranhado de ferramentas que o gênio humano construiu para salvaguardar a vida plena de todos os seres vivos na Terra. Assim, escrever, sobretudo no campo da poesia, é para mim uma forma privilegiada de sentir, ver, escutar e dizer o mundo, uma possibilidade de nele estar como ser resistente a dores, tentando fazer arte literária com os temas que me afetam, positiva e negativamente. Eu literalmente abri meus olhos de novo para a vida quando criei meu primeiro poema, aos 52 anos, e não vou renunciar a essas reinvenções que a escrita literária permite, porque é muito bom ver que cânones e establishments foram subvertidos ao longo da história pelas inventividades humanas científicas e artísticas, e saber que temos a liberdade para fazer isso também pela arte da palavra é revolucionário, sendo possível realizar desconstruções, ressignificações, reconstruções e transformações em nosso tempo também pela via do trabalho da linguagem.

Em Sorrir, esse sacrifício, sua poesia nos chama a ouvir com mais cuidado o sofrimento dos animais e da natureza. Como a poesia, nesse contexto, pode ajudar a despertar sensibilidade e gerar transformação num tempo marcado pela indiferença?

R. É precisamente disso que este livro trata: de um chamado, pela poesia, a uma escuta amorosa e atenta da natureza, das mensagens de sofrimento que ela constantemente nos transmite, não só de nossos pares animais humanos, mas sobretudo dos não humanos, aqueles que se comunicam por diversos modos e tons, mas ao não o poderem fazer com vozes como as nossas, não são por nós ouvidos. Os seres sencientes, mas não só eles, e sim todos os seres vivos do planeta, incluindo este, são vitais para nossa própria sobrevivência e nos mostram devastações, pedindo socorro a todo instante, porém, como seres antrópicos acostumados a seguir automaticamente pela vida em alta velocidade e sem compaixão, cegados pelas violências estruturais produtivo-laborais e todas as demais formas violentamente opressoras e injustas de relações às quais nos acostumamos sem refletir, sem nos questionarmos, acabamos nos tornando essas pessoas encouraçadas, empedernidas em egoísmos, arrogantes em nossas ganâncias por ter e aparentar ter a cada vez mais. A falta de consciência sobre o que acontece de fato no mundo que integramos é a causa da indiferença que nos marca negativamente em relação a tantas outras vidas, mesmo humanas; os inúmeros conflitos bélicos sempre acesos pelo mundo demonstram isso. E não nos importamos com a dor ou o bem-estar de quem nos é indiferente. Nessa cadeia de cultura da violência como regra, perdemos todos: o planeta, os bichos, as plantas, as águas, nós mesmos. Nesse contexto de destruições causadas pelas mãos antrópicas, vejo a poesia, também feita pela mão humana, mais do que nunca um contraponto essencial para o resgate das sensibilidades há muito perdidas, pelos socos que possa dar em alguns estômagos, pelos chacoalhões em muitas mentes fechadas, pelas aberturas em vistas obtusas. E para isso, como poetas, mantemos a esperança de que a poesia chegue. O poema, como artefato criado pela imaginação humana, permite-se estar ajustado aos temas próprios do tempo de suas autorias, porquanto a produção poética, como todas as formas de arte, pode impactar positivamente pela reflexão, possível pela emoção que desperta.

Muitos poemas falam da relação entre o corpo da mulher e os corpos feridos dos animais. De que forma sua escrita se conecta com as ideias do feminismo e da defesa da vida em todas as suas formas?

R. De fato, em meu livro Sorrir, esse sacrifício, essa relação entre o corpo da mulher e os corpos feridos dos animais existe, e foi feita adredemente para chamar a reflexão, de modo direto ou indireto, à horrenda indústria da carne, concreta ou metafórica, que invade nossos dias. Os corpos cansados, feridos, violados, explorados à exaustão e mortos, de mamíferas bichos, guardam total semelhança com os corpos de mamíferas humanas quando são igualmente tratados em dores, sem qualquer compassividade e respeito, com crueldades típicas de um sistema capitalista engendrado em discursos e práticas de aviltamento, desprezo, exploração rentosa injusta e anulação, chegando à aniquilação desses seres, que são “o outro”, o “diferente” não suportado por essa teia de violência estrutural a não ser na condição de mantenedor da ganância antrópica, em sua esmagadora maioria de mentalidade patriarcal de origem eurocêntrica. A principal correlação de linguagem que eu quis trazer, com alguns poemas específicos, como “Indigna(a)ção de gênero”, “Úbere cheio” e “Via Lácteo”, foi entre ecofeminismo e os estudos de gênero, servindo-me da ecopoesia. Sou uma feminista histórica do pós-Constituição Federal de 1988, tendo estudado a fundo questões de gênero e feminismos já no mestrado em Direito, que fiz na UFSC. Em 1994, eu iniciava uma densa pesquisa sobre sufragismo, ações afirmativas e sistemas de cotas para as mulheres na política, cuja dissertação resultante foi o trabalho científico pioneiro na área jurídica brasileira nesse arcabouço temático. Categorias científicas como gênero, feminismo, sustentabilidade, quando estudadas com rigor e integridade, penetram em nós e seguem conosco pela vida afora, como uma forma própria e atenta de ver e agir no mundo, e foi assim que, há três anos, quando finalmente cheguei ao meu sonho de infância, que era o de ser escritora literária, trouxe comigo, também para a poesia, todo esse substrato fundante. Após ter estudado as diversas vertentes do feminismo, atualmente encontro-me muito identificada com o seu movimento eco, que reúne preocupações com temas, seres e caminhos metodológicos que me importam muito. Foi com esse olhar que eu criei este meu segundo livro literário, mas preciso dizer que no primeiro, Pinte-me de Azul! (Mondru, 2023), o caminho da ecopoesia já estava plantado, e muitos feminismos também moram lá, como formas conectivas e sensíveis de mostrar, pela arte da palavra, a defesa incisiva e amorosa de todas as formas vivas do nosso planeta.

Depois de Sorrir, esse sacrifício, que caminhos você sente que a sua escrita pode seguir? Existem novos projetos, temas ou formas que estão chamando sua atenção neste momento?

R. Desde os meus tempos de autora científico-jurídica, sou uma sonhadora das efetividades, se assim posso colocar, e guardo muita integridade com as minhas formas de escrita e os conteúdos que abraço, os quais tanto me esmagam como ser humano, pela dor, quanto me convocam e me movem, pelo sublime e pela ternura. Nesses continentes temáticos vejo beleza, pelo poder que as palavras e os recursos da linguagem propiciam a nós, trabalhadores da escrita, torcermos com poeticidade até os sofrimentos mais profundos, os traumas, as decrepitudes, o caos, os abismos, os fins de mundo. Então, os temas que povoam minha mente de pessoa comprometida com a vida ampla, o amor e as relações de contato respeitoso, não de dominação, entre todas as espécies de seres vivos, seguirão comigo. Um desses amores que me movimentam com força criativa é aquele que, desde menininha, me fusiona com aquilo que realmente me constitui: a natureza. E é sobre isso meu próximo livro: uma frequência com a natureza, chamada haicai. Sou poeta do haicai antes de ser uma poeta livre, e muito me alegra já ter recebido algumas premiações nessa modalidade poética. Como tenho há um tempo três originais de haicais prontos inéditos, é possível que um deles saia ainda neste ano como minha próxima obra publicada.

 

Nota da edição: a arte da capa é de autoria de Remedios Varo.


Informações

Essa entrevista  foi originalmente publicada em: https://sarahmunck.substack.com/
    https://sarahmunck.substack.com/
    Você gosta dos artigos de Sarah Munck? Siga-nos nas redes sociais!
    As pessoas reagiram a essa história.
    Mostrar comentários Ocultar comentários
    Comentários para: Entrevista com Lara Galvão e Gisela Maria Bester

    Escreva uma resposta

    Login

    plugins premium WordPress