Apresentação
A imagem precedeu a palavra, exercício de construir pequenas histórias.
JANELA DO ÔNIBUS
Uma bobagem essa de achar que os anúncios lá fora têm cores que atravessam a janela brilhando como pequenas joias, neste sol de inverno que mesmo assim aquece a alma, quase que como se estivesse numa praia vendo o sol nascer no fim da madrugada, que é o que sinto, nessa esperança quase certeza de que ele vai chegar antes que o ônibus arranque e a gente ponha fim a esses longos e desordenados dias de perigos e desencontros, nesta cidade tão organizada onde até os ônibus parecem felizes e rodam no horário; olho para trás e vejo a harmonia das casas e das árvores que parecem ser um cenário criado para um happy end; sei que isso não é verdade, mas a leveza das cores na janela parecem da mesma natureza do que sinto nesse momento. Não sei como me veio essa ideia sobre as cores dos anúncios, me acho ridícula lembrando daquela musiquinha, quando a luz das estrelas parece mais bela è l’amore, è l’amore, mas é o que sinto, ridícula, faz muito tempo que não me sinto assim, aliás nem lembro direito quando foi a última vez, e tudo pareceu perdido nestes dias turbulentos, até que a gente conseguisse se entender, depois de quase se agredir naquela discussão boba sobre onde ir jantar, que coisa mais estúpida, eu disse pra ele e finalmente nós dois concordamos. No fim, pensando aqui, acho que é tudo muito louco. Nem eu nem ele sabemos qual é o nome verdadeiro um do outro, já nos acostumamos a nos tratar por estes nomes estranhos e pra mim inverossímeis destes passaportes fajutos, apesar de tão bem falsificados. Esse não é seu nome de verdade, perguntei já sabendo da resposta e ele riu, você me acha com cara de Dimitrov? foi nessa hora que comecei a reparar no seu jeito irônico, quase cínico e ao mesmo tempo sempre tenso, afinal nossa missão tinha muito mais probabilidade de nos ferrar do que de dar certo, nenhum de nós dois tinha muita esperança de sair vivo daquilo e talvez por isso a gente se entregou tão intensamente um ao outro e aí o bicho pegou, como a gente diria lá na minha antiga turma de amigos e foram eles mesmos que praticamente me jogaram nessa aventura, muito tempo atrás, na época da ditadura, a gente ainda era estudante e foi cada vez mais se envolvendo com a política e de repente eu e mais M. e N., os dois irmãos filhos do italiano anarquista, que era o melhor serralheiro de lá, a gente de repente já estava clandestino, com nome falso e destino ignorado; e até hoje não se sabe mais de M., o mais novo, virou desaparecido político depois que foi preso. Antiga turma, não tive mais notícia depois que saí do país, mas de vez em quando sinto saudades, principalmente de N., que até namorei um tempo antes. Tem certas memórias que passam às vezes como um filme, me vem esse chavão batido, claro que a memória vem com imagens, tento me lembrar aqui de alguma memória de palavras, sempre vem alguém telepaticamente falando, no sonho ou na vigília, quantas aliás nestes últimos tempos turbulentos. Como foi que a missão deu certo, algum dia alguém poderá descobrir como aquele guarda ferroviário não me viu passando os cabos do equipamento bem rente à estação, talvez isso e mais a soma de coincidências que se seguiu, do atraso da composição que trazia a carga de armas, da chuva imprevista que começou a cair justo naquela hora e do motoboy que trouxe o jantar do outro guarda, distraindo sua atenção por uns instantes, apenas o suficiente para a gente completar a ligação, tudo o que era mais provável dar errado deu certo e, boom! quando a carga explodiu, nós dois já estávamos a caminho dessa cidade tão ordenada onde a gente deveria esperar a ordem de atravessar de volta o país e, aí, diante da perspectiva de termos nos ligado tão profundamente, começaram as discussões, cada vez mais intensas, até a explosão de sentimentos de ontem. Os jornais, depois destes dias todos, ainda trazem notícias da explosão do trem, claro que não falam do que traziam, a maior parte dos novos mísseis fornecidos pelos americanos, aqueles que poderiam desequilibrar o confronto a favor deles. Quando penso na perícia em explosivos do meu parceiro, pelo menos até ontem era apenas meu parceiro, de como ele é capaz de calcular com tanta precisão o impacto das explosões, fico certa de que somos uma equipe quase perfeita, porque sem minha logística a gente não conseguiria colocar as cargas e nem estar aqui nesse ônibus para sairmos ilesos, mas não tenho nenhuma certeza do que vai ser daqui pra diante. Tento não ficar lembrando disso, da parte turbulenta, e pensar na esperança de voltar a ter uma vida normal ao fim dessa guerra, mas essa ideia é fugidia, não se firma, sempre escapa por uma fresta, é como se o normal não existisse mais depois desse tempo belicoso. Nesse momento, sinto apenas o momento, as pequenas pedras preciosas de muitas cores atravessando a janela do ônibus, brilhando como a esperança quase certeza de que ele vai chegar a tempo.


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Mostrar comentários Ocultar comentáriosSurpreendente e muito fluido o conto! Adorei