O Empréstimo

Vou divulgar uma anedota, mas uma anedota no genuíno sentido do vocábulo, que o vulgo ampliou às historietas de pura invenção. Esta é verdadeira; podia citar algumas pessoas que a sabem tão bem como eu. Nem ela andou recôndita, senão por falta de um espírito repousado, que lhe achasse a filosofia. Como deveis saber, há em todas as coisas um sentido filosófico. Carlyle descobriu o dos coletes, ou, mais propriamente, o do vestuário; e ninguém ignora que os números, muito antes da loteria do Ipiranga, formavam o sistema de Pitágoras. Pela minha parte creio ter decifrado este caso de empréstimo; ides ver se me engano.

E, para começar, emendemos Sêneca. Cada dia, ao parecer daquele moralista, é, em si mesmo, uma vida singular; por outros termos, uma vida dentro da vida. Não digo que não; mas por que não acrescentou ele, que muitas vezes uma só hora é a representação de uma vida inteira? Vede este rapaz: entra no mundo com uma grande ambição, uma pasta de ministro, um banco, uma coroa de visconde, um báculo pastoral. Aos cinquenta anos, vamos achá-lo simples apontador de alfândega, ou sacristão da roça. Tudo isso que se passou em trinta anos, pode algum Balzac metê-lo em trezentas páginas; por que não há de a vida, que foi a mestra de Balzac, apertá-lo em trinta ou sessenta minutos?

Tinham batido quatro horas no cartório do tabelião Vaz Nunes, à Rua do Rosário. Os escreventes deram ainda as últimas penadas: depois limparam as penas de ganso na ponta de seda preta que pendia da gaveta ao lado; fecharam as gavetas, concertaram os papéis, arrumaram os autos e os livros, lavaram as mãos; alguns que mudavam de paletó à entrada, despiram o do trabalho e enfiaram o da rua; todos saíram. Vaz Nunes ficou só.

Este honesto tabelião era um dos homens mais perspicazes do século. Está morto: podemos elogiá-lo à vontade. Tinha um olhar de lanceta, cortante e agudo. Ele adivinhava o caráter das pessoas que o buscavam para escriturar os seus acordos e resoluções; conhecia a alma de um testador muito antes de acabar o testamento; farejava as manhas secretas e os pensamentos reservados. Usava óculos, como todos os tabeliães de teatro; mas, não sendo míope, olhava por cima deles, quando queria ver, e através deles, se pretendia não ser visto. Finório como ele só, diziam os escreventes. Em todo o caso, circunspeto.

A porta rangeu brandamente. Era Custódio, um pobre-diabo que viera pedir-lhe duzentos mil-réis emprestados. Não vinha disposto a aceitá-los como dádiva, mas queria jurar que os pagaria dali a dois meses. Entrou cabisbaixo e humilde. Vaz Nunes olhou-o por cima dos óculos e estremeceu.

— Oh! é você, Custódio?

— Eu mesmo, doutor.

— Sente-se.

Custódio sentou-se. Contou sua necessidade, pediu os duzentos mil-réis. O tabelião escutava calado, esfregando as mãos. Quando Custódio acabou, Vaz Nunes ergueu-se, deu duas voltas pela sala e disse:

— Custódio, eu sei o que você vale, mas os tempos não estão para isso. Não tenho o dinheiro.

Custódio insistiu, explicou suas dificuldades e suas esperanças. O tabelião, afinal, sacou da carteira a quantia e entregou-lha. Custódio recebeu-a trêmulo, agradecido, jurando pagar no prazo. Despediu-se. Vaz Nunes voltou ao seu lugar e disse consigo mesmo:

— Nunca mais vejo este dinheiro.

E, na verdade, não viu.


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